quarta-feira, 24 de março de 2021

A Universidade de Sempre. Marcadores de formação, investigação e intervenção

Marcadores de formação, investigação e intervenção para a Universidade de Sempre será um novo desafio. Como ponto de partida assumirei e acomodarei alguns textos já publicados que fui desenvolvendo individualmente e em equipa bem como outras reflexões sobre o ensino superior com base na minha experiência universitária como docente, investigador e coordenador de investigação, designadamente, nos últimos anos, em estreita ligação com a escola e a sociedade. Não se trata de escrever um livro de memórias, mas sim de continuar a abrir janelas para o futuro sobre a Universidade de Sempre com todo esse material que fui acumulando, repensado e organizado de uma forma mais distanciada e livre de um certo jargão linguístico e cientificamente correto. Sabemos que a ideia de universidade vem do fundo tempo e está intimamente ligada à história da humanidade constituindo um dos principais expoentes de consciencialização, apropriação e desen-volvimento de saberes, de práticas e de tecnologias que foram emergindo pelos tempos fora no decorrer das diversas civilizações e culturas. O ser humano como sujeito inteligente, livre e, porventura, responsável mesmo antes de ser livre, como diria Emanuel levinas (1998), desde cedo começou a procurar conhecer a realidade que o rodeava, a questionar e a questionar-se sobre o seu significado e sentido para melhor a explicar e compreender, utilizar, dominar, transformar e recriar a fim de se conhecer melhor a si próprio na sua relação com os outros e os seus contextos. Sabemos que nos diferentes grupos e comunidades foram surgindo nichos de conhecimento, práticas e experiências mediadoras entre o divino, o deus omnisciente e todo poderoso e o homem como amigo de saber, ávido de conhecer e interrogar tudo o que entra no seu campo de percepção bem como o seu próprio mundo e experiência interior e de todos aqueles que consigo se encontraram e relacionaram pelos tempos fora. As universidades, desde as suas formas mais ancestrais, surgiram como um desses nichos de conhecimento, de formação, de ciência, de saberes aplicados ou de saberes-fazer através dos quais acabaram por impor a sua autoridade e até um certo poder intelectual nas sociedades ao longo do tempo. A atividade de conhecer, aprender e investi-gar, entendida como um verdadeiro poder mágico e demiúrgico (Tavares, 2011) está presente desde o início na ação e comportamento humanos. Foi-se explicitando e consolidando em diferentes civilizações e culturas do passado e abrindo janelas para o futuro. É por aí que a universidade de um amanhã mais ou menos distante deverá ser vista, repensada e reconfigurada. A sua aspiração e limite serão os anseios e os sonhos do ser humano na sua ânsia de conhecer, compreender e expli-car o ser e o acontecer do mundo, da vida e da consciência em toda a sua complexidade e simplicidade. Tudo é complexo, mas a complexidade, no fundo, no princípio e no fim, é simples. Por isso, as transformações e mudanças deverão pensar-se sempre e ter como centro o sujeito humano ávido de conhecer, aprender, investigar, dominar e transformar o mundo e as sociedades na direção da sua otimização e plenitude. A universidade nascente, de Eduba, na Caldeia, anos de 3500 a. C., onde encontramos os primeiros vestígios de uma organização que foi considerada a primeira universidade em que se ensinava escrita cuneiforme e matemática (Noah: 1971; Sjöberg: 1975), à Academia de Platão (388/87, a. C.), Grécia, fundada no bosque de Acádemos, em Atenas, reconhecida como a primeira universidade em que se aprendia filosofia, matemática e ginástica. De Nalanda, Índia (século V da nossa era) que etimologicamente significa “aquele que dá conhecimento” (Hartmut: 2002; https://www.britannica.com/topic/Nalanda) e de Cairuão, Tunísia, 670, primeira universidade árabe (Kerrou: 2009) e de Al-Azhar (Egito), a segunda universidade mais antiga do mundo em sentido moderno, a Bolonha (1088), Itália, a Universidade que viria a ser conhecida como a primeira das universidades da Europa cristã medieval entre as quais se distinguiram também e distinguem as de Oxford (1096), Paris (1170), Modena (1175), Salamanca (1218), Cambridge (1229), Coimbra (1290), Heidelberg (1386), Leuven (1425), Palermo (1498), etc., e às novas universidades dos cinco continentes, é visível um núcleo de conhecimentos e de práticas que traduz a ideia de Universidade que se projeta em modalidades e níveis cada vez mais elevados exigentes e continua nas Universi-dades mais desenvolvidas do presente. A Universidade de Sempre pretende exprimir a ideia de que a instituição universitária foi evoluindo de estruturas e dinâmicas de gestão e organização muito simples para níveis mais complexos e de-senvolvidos, mantendo a missão inicial de formar, investigar e intervir na comunidade, na socieda-de, ainda que de uma forma implícita e rudimentar, que veio a desembocar nas organizações universitárias bem mais complexas, dinâmicas e desenvolvidas que hoje temos na Europa, Ásia, América, África e Oceania. Neste longo percurso da Universidade através dos tempos, implícita ou explicitamente, estão bem presentes um conjunto de ideias e orientações que se vão constelando em torno de um conjunto complexo de variáveis em rede que traduzimos por marcadores e apresenta-remos no primeiro capítulo deste livro. Marcador é um conceito, de certa forma inovador, transposto para um sentido figurado, metafórico, que se inspira na ideia de marcador biológico, somático, bastante utilizado em investigações no campo da biologia, da medicina e, mais especificamente, nas neurociências, designadamente, por António Damásio, em que esse conceito assume um sentido e uma força especial (1994). Neste ensaio, marcador irá exprimir esse conceito que na investigação sobre a universidade do futuro e mais especificamente na investigação dos próximos 20 ou 25 anos se revestirá de primacial importância. Sabemos que a configuração da universidade do passado, do presente e do futuro bem como a dinâmica que lhe está subjacente em toda a sua transformação e mudança dependerá, de acordo com a nossa hipótese de trabalho, de saber qual o peso que virá a ter cada um desses marcadores ou macro-marcadores e da sua interseção na sua organização e gestão financeira, científica pedagógica e de extensão societal num mundo cada vez mais global, problemático e exposto aos mais diversos e letais inimigos, como o COVID-19, em que as nanociências, as nanotecnologia e tecnologias mais avançadas da informação e comunicação terão um impacto cada vez mais relevante e decisivo nesta grande “guerra” que o mundo ao nível global está a travar bem como outras que, se lhe poderão seguir. Esta abordagem, com base nesse conjunto de marcadores em rede e integrados em macro-marcadores, é nova e original não se encontrando explícita em estudos e investigações destinadas a explicar e compeender a universidade do futuro. Mas as ideias ainda que expressas de outra forma, as realidades, os acontecimentos e as relações veiculados estão bem presentes em muitos estudos e pesquisas sobre a universidade de ontem, de hoje e de amanhã, tais como as mentes, os talentos, a inteligência, os conhecimentos, os afetos, as emoções, os sentimentos, a paixão, a liberdade, a responsabilidade, a autonomia, as tecnologias, os equipamentos, os métodos, a interdisciplinaridade, os comportamentos, a organização e gestão em que destacarei a inter e transdiscipli-naridade como dinâmicas mediadoras para uma sã integração, os edifícios, os campi, os contextos sociais, os financiamentos, a empregabilidade, a democraticidade, a internacionalização e a sustentabilidade. A diversidade e importância que lhe venham a ser atribuídas poderão e deverão, no entanto, ser distintas permitindo assim configurar uma visão diferente da universidade do passado, do presente e do futuro. Será sobre esse conjunto de marcadores em rede e macromarcadores que nos concentraremos de modo particular na nossa investigação e reflexão como uma dimensão inovadora da mesma e que serve de suporte a esta reflexão. Assim, no capítulo 1, desenvolveremos a ideia de marcador, os sentidos e as suas mútuas implicações na estrutura e dinâmica da universidade. No capítulo 2, será a vez de nos debruçarmos sobre a universidade de ontem e de hoje à luz do conjunto de marcadores e macro-marcadores já identificado. No capítulo 3, deter-nos-emos sobre a universidade dos próximos 10, 20 ou 25 anos. No capítulo 4, tentaremos vislumbrar o que irá ser a universidade para além dos próximos 25 anos, a universidade de sempre. No capítulo 5, tentaremos prospectivar como serão os processos de avaliação na universidade de futuro e na universidade de sempre. No capítulo 6, daremos especial atenção à inter e transdisciplinaridade na perspectiva de uma verdadeira integração que, aos nossos olhos, configurará a universidade do futuro como marcador essencial e determinante na sua organização e gestão pedagógica, científica e de extensão à comunidade nas sociedades em que está inserida sem esquecer que as pessoas terão uma importância cada vez mais determinante em todas as suas transformações e mudanças. Por último, no capítulo 7, procuraremos alinhar algumas conclusões e recomendações com base no estudo, na investigação e na reflexão decorrente do projeto “marcadores de formação, inovação e pesquisa para a universidade de hoje e do próximo decénio” continu-ado na sua nova versão de “Marcadores de formação, investigação e intervenção para a universida-de dos próximos 25 anos” apresentada a concurso à FCT no âmbito de projetos para todos os domí-nios do conhecimento, enquadrados no Portugal 2020 e de outros estudos entretanto realizados (Tavares et al. 2016; Tavares, 2017; Mealha et al. 2018; Alarcão et al. 2018; Tavares, et. Al. 2018). Neste livro, não será minha intenção repetir e referir o que já foi feito no âmbito de projetos e estudos sobre esta temática mas sim com base em reflexões e conclusões daí decorrentes tentar repensar a Universidade, ir um pouco mais longe e mais fundo e, sobretudo, sublinhar ideias que virão a abrir novas janelas e a determinar o seu futuro que dependerá, cada vez mais, do justo equilíbrio da sua colaboração com as Empresas e o Estado à luz dos novos contextos culturais e societais de uma realidade que irá colocar-se e impor-se inexoravelmente. (Etzkowitz. 2018). O leitor não irá encontrar aqui, porventura, ideias novas mas sim apenas alguns olhares com acentuações e intensidade distintas sobre, sujeitos, objetos e ligações em situações e circunstâncias diferentes. Assim também a Universidade de Sempre será a mesma e diferente da Universidade que vem do fundo do tempo e se projeta num futuro mais próximo ou distante. Despir-se de complexos, fundamentalismos ideológicos e crenças religiosas é a atitude que se impõe e que se procura nesta grande aventura de pensar a Universidade do passado, do presente, do futuro, de sempre. (Iexto disponível completo, 1ª versão: https://www.jpctavares.com).

quinta-feira, 11 de março de 2021

António Damásio e a Exterioridade

Após a leitura dos seus livros anteriores, muitos artigos e palestras que fui lendo e acompanhando com interesse ao longo do tempo, acabo de ler o seu livro mais recente Sentir e Saber. Gosto do novo estilo mais claro e enxuto. Denota um pensamento ainda mais simples e esclarecido sobre temas de grande complexidade e que envolvem um mistério que a ciência, aos meus olhos, não consegue desvendar e acaba por escapar a toda e qualquer representação lógica da imaginação, da mente, da consciência e do próprio sentimento. Damásio procura explicar tudo dentro de uma amplitude de tempo de mais 4 mil milhões de anos, que me parece, mesmo assim, curta e fechada, sem janelas para qualquer tipo de Exterioridade a não ser o mundo exterior dos objetos, das relações e dos acontecimentos que, de certa forma, se opõem, ao mundo interior do organismo e do sistema nervoso central e periférico. Julgo, como já tive oportunidade de notar noutras reflexões, que esse é o seu grande problema ou não problema para ir ao fundo daquilo que pretende explicar e compreender. Acho que, como cientista não coloca a intenção e o sentido do antes e do depois desse imenso período temporal em que procura explicar como foi surgindo o emergir da mente, da consciência e do sentimento a partir da química, dos seres biológicos mais simples, do corpo e interação com o sistema nervoso, do meio interior e exterior, da representação imagética ou mapeamento da mente, da entrada na consciência e do sentir experiencial. Não pretendo diminuir em nada o mérito deste livro que do ponto de vista meramente científico e técnico me parece excelente. Mas discordo do ponto de partida e de chegada: o que aconteceu antes, durante e, de certa forma, o que acontecerá depois desses 4 mil milhões de anos, um tempo quase inimaginável. Sabemos, hoje, que cada vida humana que começa pressupõe uma evolução no tempo e no espaço de mais de 4 mil milhões de anos durante a sua breve existência. Mas fica a pergunta que continua, aos meus olhos, sem resposta da ciência e da própria filosofia: o que aconteceu antes desses 4 mil milhões de anos e o que acontecerá depois? Haverá uma Exterioridade ou Transcendência? Como dar o salto para o lado dessa Exterioridade, porventura, metafórico e misterioso para encontrar, a intenção e o sentido de tudo o que existe e venha a existir nesta aventura da vida, dos organismos, do sistema nervoso, do sentir, da mente, da consciência e do sentimento ao longo de todo esse tempo? Ou será que tudo foi acontecendo, por mero acaso ou por simples leis imanentes aos próprios sistemas físico, químico, biológico, psicológico e sociocultural no decorrer dessa evolução? Julgo que não é possível dar uma resposta sustentável a estas questões sem enfrentar a vertigem, a atração e a nudez de uma Realidade Outra, Exterior, Transcendente. É, pelo menos, essa a minha convicção.

sexta-feira, 5 de março de 2021

A utopia do confinamento

O confinamento não é uma solução, por si só, porque em muitos lugares do mundo simplesmente não é possível confinar. Penso não apenas em populações da África e da América, incluindo os Estados Unidos e o Brasil, mas também da Europa, da Ásia e da Oceania. Como se faz um confinamento em cidades e bairros degradados nas mais diversas regiões do planeta? Há imensa gente mergulhada em níveis de pobreza e de miséria que vivem do pouco ou muito pouco que lhes dá o seu dia a dia. Confinar seria muito pior do que ter que enfrentar o contágio e as dramáticas consequências da COVID -19. Que fazer em todas essas complexas e dramáticas situações? A meu ver só há uma solução eventualmente possível: encontrar e oferecer meios que, de alguma forma, ajudem a proteger as suas vidas mas sem fechar as pessoas em casa, pois, em muitos casos, nem sequer dispõem de uma verdadeira casa.