quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

E se António Damásio tivesse razão? A criação da mente, o nascimento do eu

E se António Damásio tivesse razão? A criação da mente, o nascimento do eu e a emergência da consciência



Introdução


As três questões maiores a que António Damásio tenta dar resposta em “O Livro da Consciência. Construção do Cérebro Consciente” a saber:
 como é que o cérebro constrói a mente?
 como é que o cérebro torna essa mente consciente?
 qual a estrutura necessária ao cérebro humano e a forma como tem de funcionar para que surjam mentes conscientes?,
ilustram bem o trajecto seguido, sobretudo, nos últimos 20 anos, pelo autor na sua investigação e prática clínica no domínio das neurociências.
Tenho lido, reflectido e estudado a obra do neurocientista em seus 4 grandes livros: “O Erro de Descartes: Emoção, Razão e Cérebro Humano (1995)”, “Sentimento de Si: O Corpo, a Emoção e a Neurobiologia da Consciência (2000)”, “Ao Encontro de Espinosa: as Emoções Sociais e a Neurologia do Sentir (2003) e “O Livro da Consciência. Construção do Cérebro Consciente (2010)” e outros trabalhos científicos de relevo. Confesso que gostei e julgo ter aprendido muito com a sua leitura e estudo. Aquela obra, porém, que mais me deu que pensar foi o livro “Ao Encontro de Espinosa”. Talvez, por ser a mais filosófica e aquela em que o autor pretendia sair das margens do neurocientista, agora Professor da Cátedra David Dormside de Neurociência, Neurologia e Psicologia na University of Southdern Califórnia e Director do Brain and Creativity Institute e ir mais além perseguindo as pisadas de Espinosa.

Em “O Livro da Consciência”, António Damásio parece deixar mais claros os pressupostos em que assenta a sua intuição de base que vem do fundo da física, da química e da biologia através de diferentes níveis de organização e complexificação no interior dessa dinâmica criadora, demiúrgica, mágica, quase divina, a evolução natural em que parece estar ausente qualquer ideia de princípio ou força de natureza exterior e distinta que dê sentido ou presida a todo o processo. Nesta grande e maravilhosa espiral da evolução que se desenrola progressivamente das formas mais simples às mais complexas e organizadas e vai passando por diferentes níveis da realidade inanimada ou sem qualquer intencionalidade à biológica, corporal, neurocerebral, mental, consciente, social-cultural, humana. Toda esta arquitectura evolucionista, porventura, dialéctica, é meticulosa e rigorosamente explicada na altura em que entram em acção os actores biológicos e neurocerebrais nos processos da criação da mente, do nascimento do eu e da emergência da consciência. Temas que nos fazem e fizeram pensar muitos curiosos, estudiosos e cientistas ao longo dos tempos, e continuam, com maioria de razão, a fazer pensar, estudar, investigar e a experimentar a António Damásio.

Nesta reflexão, porém, não entrarei na dissecação e análise de toda a engenharia biológica e neurofisiológica que está subjacente à criação da mente, ao nascimento do eu e à emergência da consciência na narrativa de António Damásio e às múltiplas intervenções do sistema nervoso e do próprio corpo nesse processo. Não é esse o meu objectivo nem seria possível descer a um tal pormenor nesta breve síntese de reflexões para uma possível discussão. Destacarei apenas os pressupostos que lhe estão subjacentes e o seu impacto na vida e nas crenças do ser humano em relação à criação da mente, ao nascimento do eu e à emergência da consciência. Acrescentarei um tópico final em que evocarei um tema que me é caro, a imanência e a transcendência, que, de certo modo, constituiu a trave mestra da minha dissertação de doutoramento defendida na Universidade Católica de Lovaina, em 1977, sobre: Le langage de l’Autre chez Emanuel Levinas et Jacques Lacan.

Para facilitar a abordagem dos tópicos que servirão de ancoragem a esta reflexão e com base na antevisão das ideias principais que o autor de “O livro da Consciência” diz terem estado na sua elaboração, sublinharei, em breves traços, a narrativa que, aos meus olhos, lhe esteve subjacente.
Há alguns milhares de milhões de anos começou a grande aventura da evolução de que Darwin foi, com certeza, um dos seus principais estudiosos, cientistas e representantes. Assim, de formas extremamente simples às mais complexas através de processos de organização e complexificação crescentes foram surgindo os mais diversos e elevados níveis de realidade mais ou menos específicos que podemos observar nos nossos dias e outros muitos que foram desaparecendo ao longo do tempo. A um nível mais próximo de nós e reportando-se directamente ao homem, Damásio assenta o primeiro pressuposto e aquele que considera mais importante: o corpo é o alicerce da mente consciente. A seguir, estabelece que as estruturas cerebrais do proto-eu não se limitam a ter a ver com o corpo mas estão-lhe intrinsecamente ligadas. Sobre este cenário estabelece a hipótese de que o produto principal e mais elementar do proto-eu são os sentimentos primordiais e todas as imagens da mente são acompanhadas por sentimentos. Defende ainda que o cérebro não começa a edificar a mente consciente ao nível do córtex cerebral mas ao nível do tronco cerebral e os sentimentos primordiais não só são as primeiras imagens da consciência geradas pelo cérebro mas também manifestações espontâneas da consciência. Acrescenta ainda que o eu e a consciência não acontecem numa só área, região ou centro do cérebro, quer se trate do eu nuclear ou do eu auto-biográfico. A mente consciente resulta da articulação fluida entre vários locais do cérebro. Gerir e proteger a vida de forma eficiente são as “grandes proezas” da consciência na sua função homeostática ou de regulação da vida. Pacientes neurológicos cuja consciência esteja comprometida não são capazes de gerir a vida mesmo quando as suas funções vitais básicas operam normalmente. Sabendo que, hoje, os mecanismos para a gestão e manutenção da vida nem são uma novidade na evolução biológica nem dependem necessariamente da consciência, acrescenta que a marcha do progresso da mente não termina com o aparecimento do eu nuclear mas vai sendo gradualmente envolvido pelo eu autobiográfico cuja natureza neural e mental é muito distinta daquele. Tanto a homeostase básica não consciente como a homeostase sociocultural criada e orientada por mentes conscientes reflexivas actuam como “curadoras” do valor biológico. As variedades básica e sociocultural da homeostase que se expandem e procuram o bem-estar estão separadas por milhares de milhões de anos de evolução mas perseguindo um mesmo objectivo: a sobrevivência de organismos vivos ainda que em nichos ecológicos distintos. Destaca, ainda, que a interacção entre esses dois níveis homeostáticos não se limita a cada indivíduo pois há cada vez mais provas de que os desenvolvimentos culturais ao longo de gerações levam a alterações no genoma. E a concluir esta súmula de ideias basilares, acrescenta que observar a mente consciente à luz da evolução, desde as formas de vida mais simples aos organismos mais complexos e hipercomplexos, permite “naturalizar” a mente e mostrar que ela é o resultado de um aumento progressivo de complexidade dentro do expressivo idioma biológico.
Em síntese, esta narrativa pressupõe a dinâmica de uma evolução natural de formas mais simples, que vem do fundo do tempo, a partir das quais se originam, constroem as formas complexas e hipercomplexas que temos hoje e possibilitarão as futuras ainda com maior grau de complexidade, através de uma longa ascensão, no decorrer de muitos milhares de milhões de anos. Nessa ascensão, a física devem biologia e a biologia, devem neurobiologia, cérebro, mente, eu, consciência, proto-eu/proto-consciência, eu nuclear/consciência nuclear, eu autobigráfico/consciência autobiográfica. É um longo ciclo do devir cujo termo não se antevê. O que é preciso é esperar que, em determinados momentos do processo, determinadas células mais ou menos específicas tomem iniciativas, de alguma forma, qualitativamente distintas, construtoras, criadoras. Toda a dinâmica é explicada mediante uma dialética evolutiva de organização e complexificação que possibilita a criação da mente e a emergência da consciência que a entrada no processo de um eu sujeito e objecto desencadeia assumindo-se simplesmente como dono e senhor da maravilha acabada de ser construída, criada a partir da sua própria iniciativa. Damásio procura explicar como é que tudo isto começou e os passos porque foi passando mas apesar de afundar esta história no tempo ao longo de vários milhares de milhões de anos, aos nossos olhos, não consegue dar uma explicação satisfatória de quando é que tudo começou e de onde veio, no estado actual da ciência, por maior que seja o grau do seu optimismo.
Defronta-se, por isso, toda a sua teoria, como é costume dizer no jargão filosófico, com uma petição de princípio, ou seja, constata-se uma ausência de princípio que não encontra, na realidade um verdadeiro fundamento. Dá-nos, por isso a ideia de uma história muito bonita e muito bem construída mas sem uma verdadeira ancoragem nem na direcção do imensamente pequeno nem do imensamente grande nem do imensamente consciente. Ou então, teríamos de concluir simplesmente que tudo é matéria e a matéria é tudo e que a matéria seria eterna e infinita e, por consequência, os milhares de milhões de anos da evolução não teriam qualquer significado em presença dessa ausência ou negação de enquadramento espácio-temporal que daí adviria.
Seja como for, a esta luz, a construção, a criação da mente, a emergência da consciência e nascimento do eu bem como a imanência e a transcendência teriam de continuar a assumir contornos e sentidos diferentes daqueles que António Damásio pressupõe na sua narrativa. Nos tópicos seguintes, apresentaremos de um modo mais claro as nossas divergências em relação àquela que, aos nossos olhos, constitui a tese de fundo de Damásio, uma vez que partimos de pressupostos diferentes. De qualquer forma, a explicação damasiana é partilhada por outros muitos cientistas, hoje, nos domínios da biologia e das micro, tecno e nanobiologias e se encontra na crista da onda do progresso científico e tecnológico pelo que nos merece todo o respeito e a admiração pela informação, análise, rigor e seriedade que coloca na sua apresentação e fundamentação.


Criação da mente

Julgo que ao considerarmos a criação da mente na perspectiva de António Damásio, a passagem descrita na página 36, é bastante elucidativa pelo que não resisto em transcrevê-la:

“A mente surge quando a actividade de pequenos circuitos se organiza em grandes redes, capazes de criar padrões neurais. Estes padrões representam objectos e acontecimentos situados fora do cérebro, tanto no corpo como no mundo exterior, mas certos padrões representam igualmente o processamento de outros padrões por parte do cérebro. O termo mapa pode ser aplicado a todos esses padrões representativos, alguns simples e toscos, outros muito refinados, alguns concretos e outros abstractos. Em resumo, o cérebro mapeia o mundo em seu redor, bem como o seu próprio funcionamento. Esses mapas são experienciados como imagens da nossa mente, e o termo imagem refere-se não só às imagens de tipo visual mas também a imagens com origem em qualquer sentido, sejam elas auditivas, viscerais ou tácteis, por exemplo”.

Na verdade, neste texto, António Damásio não fala propriamente de criação da mente mas ela surge espontaneamente quando a actividade de pequenos circuitos se organiza em grandes redes, capazes de criar padrões neurais que representam objectos e acontecimentos situados fora do cérebro tanto no corpo como no mundo exterior que representam igualmente o processamento de outros padrões por parte do cérebro. Todos estes padrões representativos são os mapas do cérebro experienciados como imagens da nossa mente referindo-se não apenas a imagens visuais mas também a imagens com origem em qualquer outro sentido. Quando o cérebro de um organismo vivo consegue mapear e representar redes de padrões neurais do mundo envolvente, do seu corpo e do seu próprio funcionamento, poderíamos dizer com Damásio que a mente, de algum modo, surge, é construída, criada. Mas será que se trata propriamente de uma criação a partir da simples complexificação e organização da matéria física, biológica, neurológica, celular, corporal? Ou seja, algo que até esse momento não existia com essa modalidade de ser e passa a existir, de alguma forma, como uma entidade superior e distinta. É justamente aqui onde a discussão começa a ser mais vigorosa e julgo que a resposta que é dada por Damásio acaba por ser muito curta, rudimentar e provisória não obstante o nível de conhecimento que pressupõe do corpo, do sistema nervoso e da sua intersecção bem como da sua estrutura, funcionamento e ligação com diferentes comportamentos psicológicos e sociais de natureza, cognitiva, afectiva e volitiva. Tenho o sentimento que, apesar de Descartes não ter razão, de acordo com uma outra tese de António Damásio bem conhecida, as suas teses continuam bem presentes e, de certa forma, incontornáveis nas quais o ser humano é integrado por uma alma física e uma alma pensante que não provêm uma da outra. Ou seja, a mente pressupõe um corpo e um cérebro mas não parece adquirido que se origine a partir da simples evolução do corpo e do cérebro através da iniciativa de um conjunto de células mais ou menos específicas e especializadas num determinado momento do processo. É tão simples e evidente como isso, diria Descartes, e continuamos a dizer também nós, uma vez que as evidências que nos são apresentadas não nos convencem tendo em conta as interrogações que nos colocam a fundura e mistério do imensamente grande, do imensamente pequeno e do imensamente consciente que a realidade existente e possível nos esconde e não deixa de provocar e seduzir a nossa cupidez de conhecer e aprender que constitui também o nosso poder mágico de sermos e de nos tornarmos mais humanos.
Será que a convicção de Descartes e de todos aqueles que, no decorrer dos tempos, defenderam que são necessários dois princípios de natureza diferente para a compreensão da realidade continua inexpugnável? Parece ser esta a questão que, não obstante, o maravilhoso progresso da ciência e da tecnologia, permanece de pé e a razão de António Damásio não parece ser suficiente para a dirimir. Esta mesma constatação é ainda mais gritante quando Damásio aborda o nascimento do eu e a emergência da consciência.


Nascimento do eu e a emergência da consciência.

Este passo na tese evolutiva defendida por António Damásio é ainda muito mais problemático e complicado embora tudo seja apresentado de uma forma extremamente simples. Aos meus olhos, Damásio defende que quando a mente é assumida por um eu, na sua dimensão subjectiva e objectiva, inspirando-se em William James, torna-se consciente. Ou seja, nesse mesmo momento, emerge a consciência que irá depois fazer o seu caminho, da proto-consciência à consciência auto-biográfica ancorada na consciência nuclear. Damásio procura basear a sua explicação no princípio evolutivo da matéria mas, na verdade, ficamos sem saber como, de repente ou no decurso de milhares de milhões de anos, aparece esse eu como dono e senhor do processo, que toma decisão nos mapeamentos das imagens do cérebro e das percepções, representações e memórias da mente e as torna conscientes, as conceptualiza e as transforma em raciocínios. Sabemos, de há muito, que o eu enquanto sujeito de conhecimento toma toda a iniciativa através do seu próprio corpo e, especialmente, do cérebro e todos os seus mecanismos cognitivos ao nível sensorial e do entendimento, mapeando através padrões neurais, redes de imagens, de sensações, percepções, ideias o seu mundo interior e exterior que lhe chega da realidade corporal interna e externa das mais variadas formas e através de diversos estímulos. Ou seja, o eu, com todo o equipamento que lhe é fornecido pelo corpo que integra naturalmente toda a arquitectura e funcionamento do sistema nervoso central e periférico e a mente, a sua dimensão espiritual, toma toda a iniciativa na acção de conhecer os objectos, os acontecimentos e as relações que lhe são presentes através dos mais diversos estímulos que, de certa forma, como luzeiros, assinalam a vinda à presença de tudo o que é real. Damásio, na verdade, não admite esta dupla realidade corporal e espiritual mas apenas um contínuo, produto da simples evolução que é susceptível de atingir níveis de complexificação e organização mais ou menos perfeitos como mente, como eu e como consciência proto, nuclear e autobiográfica.
Pessoalmente, tendo em conta a realidade tal como vai sendo conhecida, na direção do imensamente grande, do imensamente pequeno e do imensamente consciente, sinto-me, apesar de tudo, não obstante também manter um certo optimismo diante do progresso científico e tecnológico a que estamos a assistir e no qual, de algum modo, participamos, mais confortado admitindo, ainda que provisoriamente como Descartes, a crença de que alguém num certo momento do processo evolutivo ou outro tomou a iniciativa e criou as mais variadas e misteriosas formas de realidade actual ou possível e não deixou isso ao simples acaso ou das leis da evolução. Pessoalmente, não receio em assumir também esta possibilidade que, não obstante, o maravilhoso progresso científico permanece como uma explicação não menos consistente que as outras embora infinitamente misteriosa e não demonstrável por processos meramente científicos e tecnológicos ou simplesmente racionais. É isso o que iremos tentar explicitar um pouco mais abordando um tema que nos é caro, a seguir: a imanência e a transcendência.



Imanência e transcendência

Como referia acima, imanência e transcendência foi um dos eixos fundamentais que atravessaram a minha investigação para a elaboração da tese de doutoramento realizada entre 1974 e 1977 na Universidade Católica de Lovaina subordinada ao tema “Le Langage de l’Autre chez Emmanuel Levinas et Jacques Lacan” orientada pelos Professores Jacques Taminiaux e Jacques Schote. Ainda hoje, tenho bem gravado no meu espírito, uma pergunta que me foi colocada na arguição: não será que o que procura demonstrar não passa de “uma pura tautologia”?. Argumentei com força e com uma certa indignação até porque a questão vinha de um dos meus orientadores que, embora fosse pertinente, ma deveria ter colocado no início ou, pelo menos, durante o processo da elaboração do trabalho. Ou, então, foi simplesmente para me espicaçar o que, como sabemos, também faz parte desse ritual.
Nas verdade, a minha tese assentava na base de que, embora se pudessem encontrar pontos de convergência na abordagem da Linguagem do Outro em Jacques Levinas e Jacques Lacan, no fundo, eram diferentes porque partiam de pressupostos distintos. A linguagem do Outro em Levinas era exterior ao sistema da totalidade, le tout autre, l’ infini. Em Lacan ela era interior ao sistema verificando-se apenas não na continuidade metonímica mas, sobretudo, na rotura metafórica em que o sistema fechado e rígido da verdade da representação lógica em que assenta o saber científico, “o saber da universidade”, como costumava dizer Lacan, era, de certa forma transgredido, pela verdade da alêtheia que ao revelar oculta o próprio mistério da realidade e por isso a torna impossível de dizer e conceptualizar como algo ausente que acabou de deixar o lugar em que se encontrava ainda quente pela sua presença. Jacques Levinas também partilhava uma visão semelhante e distinta contra a violência da representação lógica ou tematizante, a da experienciação anárquica e ética em que a razão dessa honestidade e respeito pela realidade é imposta por um princípio exterior, transcendente, infinito, fora do perímetro da totalidade. Lacan inscreve a sua teoria dentro da totalidade, é imanente à mesma, a rotura dá-se dentro do próprio sistema espácio-temporal em que o ser humano acontece e habita.

Voltando a António Damásio é fácil constatar que a sua teoria é essencialmente imanente à realidade. Tudo acontece no interior desta realidade sem qualquer intervenção de um princípio ou ser exterior apenas mediado pela dalética da evolução ao longo do tempo em que as realidades mais simples vão evoluindo para realidades mais complexas dando, de certa forma, saltos qualitativos através de golpes mágicos que a própria especificidade, complexidade e organização assumem em determinados momentos do processo. Iniciativas transformadoras, construtoras ou, porventura, criadoras que algumas células ou conjuntos de células provocam espontânea e naturalmente.
Damásio tem, aos nossos olhos, procurado fundamentar esta tese na sua obra escrita e na sua experiência clínica de neurologista e neurocientista com grande mestria mas não deixa de nos deixar enormes dúvidas porque da análise, estudo e reflexão que temos vindo fazer ao longo de todo este tempo na esteira de muitos outros pensadores e cientistas parece-nos que o que se propõe e procura demonstrar é excessivo e não tem apoio na realidade tal como ela continua a apresentar-se-nos como muito misteriosa e impenetrável aconselhando-nos a moderar o nosso otimismo de cientistas e a sermos mais honestos, pacientes e, porventura, mais modestos e menos exibicionistas.
É por isso que, apesar do respeito que me merecem os estudos, a investigação e a intervenção de António Damásio e da sua equipa, nos domínios da estrutura e funcionamento dos diferentes partes do cérebro e da sua ligação como o corpo, com o meio interno e externo bem como a sua interligação com a actividade psicológica e sócio-cultural do ser humano na interface das dimensões cognitiva, afectiva e volitiva ou de tomada de decisão, não podemos deixar de moderar a nossa cupidez e a nossa loucura, se me é lícito usar este conselho de Steve Jobs, e continuar a preferir que a resposta à pergunta de Shakespear, no início do Hamelet: quem está aí?, não pode ser um sonoro “nada”, “um ninguém” mas “qualquer coisa diferente”, “alguém” que possa dar resposta à nossa curiosidade incurável diante desta realidade que nos habita, somos, nos envolve e nos escapa constantemente.

Por isso, as explicações de António Damásio parecem efectivamente inscrever-se no sistema fechado da totalidade material em que a dinâmica evolutiva possibilita a emergência dos diferentes níveis de realidades existentes ou possíveis mas sem qualquer abertura exterior. Ou seja fecha-se num sistema imanente sem qualquer possibilidade de transcendência que, aos meus olhos, é curto para dar resposta às interrogações que se levantam sobre o princípio, o desenvolvimento e o fim de tudo o que existe, do que somos, do que queremos, nos envolve e nos sustem. Sem negar a evolução natural, não podemos deixar de admitir uma certa visão criacionista da realidade que, de alguma forma, nos deixe respirar como humanos e dê sentido à nossa racionalidade ainda que, porventura, menos objectiva e racional. O que é misterioso continua a ser uma abertura para a nossa sede de conhecer e aprender que constitui o nosso poder mágico de ultrapassarmos os nossos limites e, em certa medida, nos constitui como humanos e nos possibilita continuar a nossa saga de sermos, nos tornarmos mais humanos.

Se António Damásio tivesse razão tudo isso estaria seriamente comprometido e nosso sonho transformar-se-ia num enorme pesadelo. Felizmente, continua a haver razões que a razão desconhece mas reconhece.


Nota bibliográfica e webgráfica

Mantenho aqui a mesma atitude que expressei no meu livro “O Poder Mágico de Conhecer e Aprender” publicado no Brasil, em Novembro de 2011, a saber, não irei alinhar aqui uma listagem de referências bibliográficas e webgráficas que, na verdade, não fariam muito sentido, pois, em grande medida, fazem já parte de um património que, algum modo, é de todos. A originalidade do que se escreve e se diz, hoje, começa a ser cada vez mais rara. Devo, no entanto, notar que enquanto ia meditando e escrevendo estas páginas fui lendo dois livros que, neste momento, me acompanham, “O Livro da Consciência. A Construção do Cérebro Consciente” de António Damásio e “Steve Jobs” de Walter Isacson bem como alguns endereços da Net em que a minha atenção se deteve mais especificamente e que também não irei referir por não me parecer de particular interesse nem se revestir de uma utilidade especial para os potenciais leitores deste texto.

Aveiro, 12 de Janeiro de 2012
José Tavares

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

O poder mágico de conhecer e apreder na educação e na pesquisa

Avançar com um blogue sobre um tema desta natureza é um enorme desafio atendendo sobretudo ao qualificativo "mágico". Trata-se efecticamente de um poder´mágico no sentido de ser essencialmente transformador, dimiúrgico que a acção de conhecer e aprender de facto envolve. É por esta via que orientaremos os comentários que iremos disponibilizando neste blogue.

O poder mágico de conhecer e apender poderá desenvolver-se em diferentes campos de incidência. Neste caso, esses campos são a educação e a pesquisa. Não valerá a pena referir que se trata de campos extremamente complexos e desafiadores em que a magia de conhecer e aprender em toda a sua força, discernimento e criatividade terão de ser postos à prova. Vejamos pois como esse poder mágico, demiúrgico, criador se manisfesta e actua:

na educação
Como sabemos, do ponto de vista etimológico, educação deriva de educere "sair do seu próprio fundo", "desenvolver-se a partir do seu próprio potencial" biológico, psicológico em interacção como as diferentes mediações internas e externas espácio-temporais. A educação, como construção no espaço e no tempo. Educar pressupõe, duas dinâmicas que se implicam e potencializam:

na formação e pesquisa.

Formação e pesquisa são duas realidades, de alguma forma, inseparáveis. Hoje, não se pode formar sem investigar e investigar é, de alguma maneira também, formar. Os alunos, os professores e os investigadores não podem deixar de trabalhar esforçada e rigorosamente nesta perspectiva quer no aprofundamento das próprias temáticas quer nas metodologias a pôr em acção. Tudo isto, porém, terá de passar através desse poder mágico de conhecer e aprender que é transversal a toda a acção humana. Só assim nos tornaremos mais humanos que é o grande objectivo desta aventura em que todos estamos envolvidos. Mas haverá que fazê-lo com uma grande avidez à mistura com uma certa loucura que nos torma mais disponíveis sobre o passado, o presente e o futuro para os re-inventar, recriar e transformar ou, mesmo, transmutar. Eis o grande desafio verdadeiramente demiúrgico e criador que nos espera nos novos tempos.
Do mais fundo da nossa realidade inconsciente e consciente que se desdobra muito provavelmete a partir de toda a arquitectura genética e neurocerebral que suporta e possibilita o fenómeno da consciência, conhecer e aprender estão subjacentes a toda a acção verdadeiramente humana pessoal e colectiva. Por isso, conhecer e aprender para além do fascínio e cupidez que encerram são também fonte de querer, de poder, de amar e estar com os outros. Daí que despertar os alunos para esta realidade deverá ser uma prioridade de toda e qualquer acção educativa e da própria vida do homem na sua grande aventura de se tornar mais consciente e livre, mais humano.
Avivar esta vontade, este desejo, esta fome de querer conhecer e aprender é abrir-se e predispor-se para a pesquisa e invenção cientítica, transformação tecnógica e criação artística; é o princípio da sabedoria que constitui esse poder mágico do humano que deverá configurar toda a sua acção. Como entusiasmar os alunos, desde cedo, a embarcar nesta aventura é o grande desafio e o trabalo fundamental a realizar com eles na educação e na formação. É essa, pelo menos, a minha convicção.
Se os alunos e as pessoas, em geral, na sua vida do dia a dia, não qusiserem conhecer mais, aprender continuada e progressivamente qualitativa e quantitativamente, devevolver e optimizar este poder mágico de conhecer e aprender, os conteúdos de conhecimento cietífico e pedagógico e as diversas e sofisticadas metodolgias utilizaadas para o efeito serão insignificates e ineficazes. Será preciso antes ajudar a libertar essa vontade, esse desejo, esse poder de conhecer e aprender. É essa a convicção e a atitude que encontramos nos grandes cientistas, pedagogos e artistas de todos os tempos e constitui a grande força que os fez avançar, desenvolver-se e tornar-se conhecidos. Esta intuição é fácil de descobrir na suas obras bastando apenas alguma atenção e discernimento.
A este propósito a recomendação de Steve Jobbs que foi também um dos lemas da sua vida, "manter-se ávido e louco", assume todo o sentido, força e poder de acção, porventura, um poder mágico, nesta travessia da vida humana em que ainda numa outra máxima que também é sua "a morte é a melhor invenção da vida" que não anda longe daquela outra bem conhecida de Jesus de Nazaré:"se a semente não apodedrecer não haverá nova vida". Uma verdade que atravessa todos os níveis biológicos e humanos.

Acabo de publicar, no Brasil, na LiberLivro (Brasília) um livro sobre "O Poder Mágico de Conhecer e Aprender" onde poderá encontrar um conjunto de temas que, de algum modo, são atravessados pela ideia de que conhecer e aprender que está subjacente a toda a acção humana mais ou menos consciente é um verdadeiro poder mágico. Convido-o a ler este livro e tentar descobrir como é que esse poder acontece na acção humana e como será possível optimizá-lo em prol das pessoas e do mundo em que nos é dado viver. Trata-se de um convite e de um desafio que aqui lhe deixo. Por minha parte, estou disponível para reflectir consigo sobre essas e outras ideias que achar por bem trazer para o debate. Venha daí. Há muito a desbravar sobre este assunto. (Ver: https://www.livrarialoyola.com.br/detalhes.asp?secao=livros&CodId=1&ProductId=320214&Menu=1)

Incentivar, desde o início, na criança, este poder mágico de conhecer e aprender constitui o segredo e a garantia do seu desenvolvimento pessoal e profissional futuro. Será com base nesse conhecimento e aprendizagem atravessados ou lubrificados pela afectividade como estruturante fundamental que a educação e a socialização deverão efectuar-se para o seu equilíbrio psicológico e cidadão. Como referíamos acima, não é possível desejar, querer, amar, estar com os outros, ser livre e responsável sem esse poder que é constitutivo do ser humano através da sua capacidade de conhecer e aprender. Daí que nunca será demais sublinhar este seu poder mágico, transformador, criador, demiúrgico, quase divino, como me apraz dizer.
Este poder mágico de conhecer e aprender que é transversal a toda ação humana é um sucedâneo que vem do fungo do tempo na dinâmica da evolução física, biológica, psicológica e sócio-cultural. Há toda uma pesquisa nos domínios das neurociências, como as de António D amásio, entre tantos outros cujas conclusões são muito animadoras ainda que, porventura, demasiadas optimistas. Veremos, mais em pormenor, mais adiante as virtualidades e fraqueza destas teses.

António Damásio, por exemplo, disseca e explica todos os mecanismos neurocerebrais que intervêm nas disposições inconscientes básicas, na criação da mente, no surgimento do eu e na emergência da consciência tendo em conta apenas os diferentes níveis de complexidade e organização que assumindo diferentes tipos de células, mais ou menos, especializados e padrões ou redes de padrões neutrais na dinâmica da evolução através de iniciativas especiais e espontâneas que conduzem, de certa forma,a dar saltos qualitativamente distintos. Do material ao imaterial, da física à biologia, do corpo ao espirito, de realidades tagiveis a intangíveis. Ora esta é uma tese que, aos nossos olhos, apesar da evolucção científica e tecnológica, estã longe de estar provada.