domingo, 13 de dezembro de 2015

As mentes

Falar de mentes traz-nos, de imediato, ao espírito as "mentes brilhantes", os superdotados, os espíritos fora de série, os cérebros, os génios. Não é sobre isso, porém, que aqui pretendemos diretamente incidir. Aos nossos olhos, a mente emerge na grande aventura da evolução como algo bem mais questionante e misterioso. A mente, o "mind", "l'ésprit", o "ruah",  o nous, a alma, a psyquê, sobrevêm à física, à química, à vida e abrem as portas à vinda do eu para se poder tornar consciente, livre, responsável, autónomo. A mente é número, é medida, é ordem, é música, é ar, é água, é movimento, é vida, é transparência, é Olimpo, é altura, é simplicidade, é céu. A mente vem do fundo do tempo e continua a desenvolver-se e a otimizar-se sem cessar. A mente é feita de extensão e inextensão, de matéria e energia corporal e espiritual. É o  minded brain de Demásio ou minded body de uma certa tradição contra o mind and body como ideias perfeitas ou mónadas cartesianas e leibnizianas, respetivamente, eis o dilema que permanece e continua a questionar o homem do presente e do futuro. Muitas teorias sobre a mente foram surgindo no decorrer do tempo de recorte mais espiritualista, materialista,  hiperfenomenista ou neurobiologista que aqui não irei dissecar.

A mente manifesta-se através dos comportamentos inteligentes e foi desde sempre  um tema de questionamento do homem. Nos tempos mais próximos e recentes,  realizaram-se estudos e pesquisas notáveis sobre a mente ligados, sobretudo, à essência e natureza da inteligência e sua medida de que recordo apenas, entre muitos outros, os de Robert Sternberg, Howard Gardner e António Damásio. Centro-me especialmente nos contributos de Gardner e Damásio por me parecerem ser aqueles autores que abriram perspectivas mais fecundas e inovadoras para descrever e compreender os mistérios da mente e, designadamente, "Cinco Mentes para o Futuro (2007)"  e "O Livro da Consciência. A Construção do Cérebro Consciente (2010)", respetivamente.

As mentes revelam-se através de comportamentos inteligentes mais específicos e gerais ou inteligências múltiplas mas fica-nos sempre uma questão ou uma cascata de questões por responder: em que momento da evolução se manifestam esses comportamentos inteligentes susceptíveis de indiciar que uma determinada mente começou a existir na longa aventura da cadeia da evolução? Apenas com a origem da vida? Com  o atingir da sensibilidade, da imaginação, da memória, da inteligência, da intuição, da razão? Acho que a ciência ainda não tem uma resposta e, irá, com certeza, tardar bastante em encontrar uma que seja minimamente satisfatória. Por isso, o modo de colocar as questões poderá ajudar a olhar para a realidade da mente com outros olhos e mudar a própria atitude, aguçar o engenho e a curiosidade bem como ajustar o método de pesquisa.

Por vezes, ouvimos testemunhos de pessoas simples, do senso comum e, até, de pessoas bem letradas e críticas dizer: as plantas gostam que se lhes fale e se acariciem. E há jardineiros e pessoas que gostam de plantas que fazem isso. Terá algum fundamento esta espécie de crença ou intuição científica e filosófica? As evidências, julgo que ainda não são suficientes para dirimir a questão, de qualquer modo as fronteiras entre a vida, a sensibilidade, a inteligibilidade e racionalidade são difíceis de demarcar. Dos animais diz-se e espera-se ainda muito mais, pois revelam comportamentos que parecem inteligentes e pressuporiam uma energia mental com elevado nível de otimização. O que há de fundamento em tudo isto? A resposta poderá, eventualmente, vir de uma certa concepção de evolução que António Damásio tende a defender nos seus escritos na qual a mente foi emergindo naturalmente no decorrer de milhões de anos na cadeia da evolução da matéria, da energia, da vida e das diferentes espécies através de uma dinâmica espontânea de complexificação progressiva em que num dos últimos patamares aconteceria a entrada do eu na mente para a tornar consciente, livre, responsável e autónoma. Como já escrevi, noutros lugares, aceito esta evolução mas não de um modo puramente natural e espontâneo uma vez que haveria que pressupor a existência de um princípio criador infinitamente livre, autónomo e omnipotente,  indispensável para lhe dar sentido e consistência ontológica. Seria a exigência de uma Causa Primeira que a ciência do filosofar teima em não deixar cair às mãos de um evolucionismo espontâneo e sem fronteiras no antes e no depois. Algo ou, porventura, melhor, Alguém terá que dar sentido a esta maravilhosa odisseia da evolução de que a mente estaria num dos seus lugares cimeiros.

Num jeito mais descritivo e pragmático, Howard Gardner identificou cinco mentes para o futuro: uma mente disciplinada ou seja informada através de diferentes conteúdos ou matérias disciplinares, uma mente sintética, com capacidade de síntese, uma mente criativa aberta à inovação, à criação artística  e invenção científica e tecnológica, uma mente respeitosa, atenta e honesta na aceitação da realidade das coisas, das relações e dos acontecimentos e uma mente ética disponível para obedecer e cumprir um certo imperativo categórico de praticar o bem e evitar o mal à luz não do medo do castigo, dos interesses, das normas mas da justiça. Ou seja, como sujeito humano, inteligente, livre e responsável o homem deverá procurar praticar o bem e evitar o mal sempre. É esta mente, a cinco ou a mais vozes, que gostaríamos de colocar aqui à consideração do leitor e que não deixa de instigar o nosso espanto e aguçar a nossa curiosidade.

Olhando, agora, para a mente como um marcador privilegiado na estrutura e na dinâmica da Universidade de hoje e de amanhã, não há dúvida de que ela assume e deverá assumir uma relevância cada vez mais determinante. Não é por acaso que a instituição universitária põe e continuará pôr um cuidado especial em descobrir, contratar e desenvolver as melhores mentes e as mais brilhantes e ajustadas para realizar os projetos de formação, de inovação e pesquisa que surgem no seu interior. A sua imagem interna e externa dependem, em boa medida, da existência de cérebros e de mentes brilhantes que conseguem encontrar e otimizar no seu seio. As reflexões que tenho constatado nas entrevistas que estou a fazer a docentes universitários da Universidade de Aveiro na pontuação deste marcador apontam nessa direção com pontuações normalmente muito elevadas e tansversais a todos os entrevistados independentemente da idade, do género, da área científica e da experiência académica. A mente, presente nas mais aprofundadas e diversas concepções passadas, presentes e futuras, é determinante e irá continuar a estar subjacente a todos os demais marcadores que identificamos e, designadamente, os afetos, a autonomia, as tecnologias, os métodos, a organização, os equipamentos,  os edifícios, os contextos, os financiamentos e os comportamentos.

Sabemos que a mente e em especial a mente consciente é uma condição indispensável e incontroversa para tornar possível e efetivo "o poder mágico de conhecer e aprender" dos sujeitos e das organizações aprendentes sejam eles simplesmente biológicos, psicológicos, sociais ou culturais. Mas a mente é também inseparável dos afetos, o seu lubrificante natural, o que faz dela uma mente apaixonada, sentimental, emocional que a entrada do proto-eu, do eu nuclear e do eu autobiográfico irá transformar numa consciência inteligente, afetiva e volitiva individual, social, ética, cultural. Este poder mágico de conhecer e aprender que os humanos exprimem a um alto nível de realização para se tornarem mais humanos e felizes é verdadeiramente extraordinário e maravilhoso. Infelizmente, esse poder demiúrgico e transformador, libertador, envolve também um enorme risco de se degradar e poder conduzir o devir humano para uma enorme catástrofe. Mas é essa a grandeza e o preço da liberdade humana. Nestes últimos tempos, há sinais que nos indicam claramente que as situações e os problemas não estão a ser abordados da melhor forma e que será necessário alterar o rumo e, eventualmente, os métodos. Será nisso que a Universidade de hoje e do próximo decénio, em particular, poderá ter um papel de primacial importância a desempenhar pelo que terá que acolher no seu seio mentes brilhantes, esclarecidas, instruídas, sintéticas, criativas,  respeitosas e éticas que possibilitem uma consciência e um agir cidadãos mais inteligentes, afetivos, livres, responsáveis e autónomos. Mas estas mentes também se desenvolvem e aprendem constantemente. É essa a sua marca, o seu desígnio como aconteceu no decorrer da longa história da evolução que vem do fundo dos tempos.

Fica ainda a questão sobre a possibilidade de existência de outras mentes na imensidão do universo para já não falar das mentes artificiais criadas pelo homem à sua imagem e semelhança, pois ainda que representem apenas um grosseiro simulacro, poderão evoluir e aperfeiçoar-se rapidamente no futuro. Abrir-se a todas estas mentes irá ser o grande desafio dos humanos e possíveis extra-humanos que poderá vir mudar profundamente as vidas e os comportamentos bem como os modos de pensar e de agir que lhe estão subjacentes. De qualquer modo, será por esta abertura de questionamento e de desafio que deveremos olhar para os mistérios desta mente que habita o mundo e nos habita. Uma mente de afetos a que a entrada do eu nela faz emergir a consciência dando-lhe a possibilidade de se tornar mais inteligente, mais livre, responsável e autónoma.

As mentes na Universidade assumem uma importância essencial e transversal a toda a instituição e a todos e a tudo o que a integra e a habita. Por isso, os marcadores, por nós identificados e todos os outros que passam pela sua intersecção, dependem, em boa medida, das mentes, dos talentos disponíveis e dos afetos que lhe servem de lubrificante para o seu desenvolvimento e e otimização. Sem isso, a autonomia, as tecnologias, os métodos, a organização, os edifícios, equipamentos, os contextos e os financiamentos de pouco serviriam.  

   

(texto em construção)